sábado, 31 de outubro de 2009

Manuel de Figueiredo

Manuel de Figueiredo, que publicou o seu primeiro trabalho literário em 1918, pelo que dele conhecemos, há-de ter nascido no último decénio de mil e oitocentos, no Porto, de família abastada, com ascendência próxima ligada a Lemenhe. Fora seu pai quem adqui­rira a casa de Fralães, mantendo assim a família, durante muito tempo, residência no Porto e na província. Se as suas primeiras obras vieram a lume em Lisboa, lá terá Manuel de Figueiredo feito o seu curso superior e bebido ou aprofundado a influência simbolista e neogarretista que o marcará. De resto, depois de um período juvenil mais dado à literatura, Manuel de Figueiredo terá sentido a necessidade de votar o seu tempo a actividades mais comuns, pelo que, depois, a produção literária surge mais rara. Da sua produção escrita avultam claramente duas áreas, bastante próximas, complementares se poderia dizer, às quais dedicou as suas atenções de homem culto: a ficção dramática e a crítica de Artes Plásticas.
Interessado em coisas da história pátria como é timbre dos entusiastas de Garrett, facilmente se harmonizariam o exercício do cargo de director ao Museu de Soares dos Reis, a sua paixão por Henrique Pousão e por outros pintores da geração deste, a escolha do período áureo dos Descobrimentos como espaço cronológico preferido para a ficção e até o facto de ter a sua biblioteca e gabinete de trabalho instalados num dos andares da torre senhorial do antiquíssimo solar de Fralães. Manuel de Figueiredo escreveu também para revistas e jornais, embora não tenhamos nenhum conhecimento da sua produção jornalística. Não sabemos também se se lhe deve a iniciativa da colocação da estátua de Garrett frente à Câmara Municipal do Porto, posto que fosse à altura ele o vereador da cultura e tivesse proferido então uma alocução para assinalar o acontecimento.
Se bem que a vida deste homem culto se repartisse por locais e afazeres variados, o que ainda resta da sua já mencionada biblioteca na casa de Fralães mostra elucidativamente quanto ele acarinhava este posto do seu lavor intelectual.

A obra de Manuel de Figueiredo não é muito extensa, mas é certamente de apurado gosto. Apesar porém de ter privado com nomes cimeiros da cultura do seu tempo e do mérito que cremos presente na sua obra dramática, não lhe foi concedida a honra de figurar em nenhuma das duas principais enciclopédias portuguesas. De momento, parece ser o seu trabalho sobre Henrique Pousão aquele que melhor tem resistido ao desgaste do tempo. A tal não será alheio o facto de, no Museu de Soares dos Reis, Manuel de Figueiredo ter podido tão longamente meditar sobre a obra deste pintor. A capacidade pictórica, pela palavra, de que era dotado tê-lo-á tornado particularmente apto para captar os segredos dos quadros de Pousão.
Eis a lista de obras e opúsculos que Manuel Figueiredo publicou, mais ou menos cronologicamente ordenados; Oração da Raça, 1918; Infanta, 1921 (teatro); A Margem de ‘O Piedoso e o Desejado’ de Carlos Malheiro Dias, 1929; Favicha, 1935 (conto); A Monja e o Rouxinol, 1936 (narrativa); Rei Lusíada (teatro); Dois Papas – Pio XI e Pio XII, 1940; Mestre João Correia e alguns dos seus discípulos, 1949; O portuense Almeida Garrett; A linguagem dos Painéis de S. Vicente, 1956; O infante rey D. Sebastião, 1955 (teatro); Um Pintor de Leça - António Ramalho, 1959; O Barão de de Forrestier – o Homem e o Artista, 1964; O Homem que não Pregou no Deserto (teatro); O Mar (teatro); O Pintor Henrique Pousão.
Vários destes trabalhos são separatas de revistas ou textos de conferências.
A «Infanta»

«Das mais belas revelações literárias dos últimos tempos»

Sobre a «Infanta», escreveu o famalicense Júlio Brandão – provável conhecimento familiar de Manuel de Figueiredo – uma recensão critica bem elogiosa e fundamentada.
Ei-la:

«É justo que tracemos algumas linhas de referência ao volume “Infanta”, do Sr. Manuel de Figueiredo. O autor é um rapaz, o seu livro uma estreia. Mas a estreia é brilhante.
É também teatro – mas teatro que não procura os fulgores da ribalta. “Não fiz, nem quis fazer teatro”, diz o autor. “As personagens têm um sentido mais simbólico do que humano”. Isso importava pouco. No teatro grego, em Shakespeare, em Molière, em Ibsen, há figuras de um profundo simbolismo, sem deixarem de ser vivas e humanas.
Ainda há pouco dizíamos que está em voga, no momento, este teatro que não visa a representar-se, e que não sendo estático, como admitia em tempo o grande belga, todavia se não amolda facilmente às contingências e às exigências cénicas. Com «Infanta», trata-se na realidade de um poema dramático, escrito em prosa rítmica.
Passa-se na época manuelina. Cada um dos três quadros que o compõem é precedido de um desenho evidentemente intencional, e não puramente decorativo: - a cruz de Cristo, a esfera armilar, as armas portuguesas... É a apoteose das energias da raça, que a «Infanta» simboliza, em contraste com os pavores augurais e depressivos dos que tentam cobrir de crepes e de presságios o mágico esplendor da nossa Epopeia marítima – representados pelo Astrólogo, uma espécie de Velho do Restelo, que perscruta os mistérios do céu. De resto, o autor elucida que o livro é “a tragédia dum momento que passou, e a crença, a certeza num momento que há-de vir. É o triunfo eterno da Raça perante o mundo, os homens e o destino”.
Sendo assim, a “Infanta” nada a ver com D. Beatriz nem o Poeta com o autor de “Menina e moça”, cuja lenda de amores já nos deu esse incomparável “Um auto de Gil Vicente”, de Garrett.
Não nos parecia, portanto, necessária a alusão a tais personagens históricas, visto que apenas a época nos interessa, e as figuras se cortam num fundo de vitral (simbolicamente, como o autor acentua) embora modeladas com um vigor e talento notáveis. E certo que o autor nos avisa que o livro não é a história do amor do Poeta e da Princesa, ou uma evocação da corte manuelina. Por isso mesmo se nos afigura desnecessária a referência à princesa e ao poeta, como que a dar certo sabor histórico ao de luz de um pintor admirável, tudo isto no embalo rítmico duma forma deliciosamente sugestiva, em que o Sonho e a Beleza se engastam como pedras preciosas. Leitor de Maeterlinck, o Sr. Manuel de Figueiredo é inconfundível. Bebe pelo seu copo que é de cristal esplêndido. E embora um pouco tarde, não quisemos deixar de registar o volume, que é das mais belas revelações literárias dos últimos tempos».
Júlio Brandão Veja-se agora o início do II Acto desta obra, segundo a escrita arcaica nela usada:

«Uma das saltas da camara da Infanta, abrindo sobre o rio por duas grandes janellas abertas de par em par. Forram-na brocados de seda branca e oiro palido; veludos doirados cobrem os coxins. Na parede da esquerda, ao centro, sobre um estrado, uma cadeira de espaldar alto, coberta de pano de oiro, tendo por fundo uma tapeçaria armoriada e, a encimá-la, um docel de lhama. Mesa rendilhada de marfim e embutidos d’oiro, ao centro, sobre uma alcatifa oriental.
A direita e à esquerda portas cobertas por damascos brancos, brazonados. É uma salla de luar em que o outomno deixou cair as folhas.

Aias trabalham afanosas, em silencio, dobrando grandes peças de brocado d’oiro, de lhama prateada, de sedas damascadas. Outras, sentadas nos degraus do estrado, escolhem joias, que passam de mão em mão, e que a aia Leonor – pequenina como feita para o dedal – entrega á princeza. Escurece.
Uma das aias canta em surdina:

«Estava a bella Infanta
No seu jardim assentada
Com o pente d’oiro fino
Seus cabelos penteava.
Deitou os olhos ao mar
Viu vir uma nobre armada
Capitão que n‘ella vinha
Muito bem que a governava.»

INFANTA com abandono, deixando cair lentamente pedras soltas, uma a uma, na mão da aia. São como gottas de sangue estes rubis... Pedaços de céu estas saphiras... Lágrimas de estrella os diamantes.
UMA AIA acercando-se da janela aberta. Já vai anoitecendo... E’ sempre o rio o mais lindo vitral a esta hora.
INFANTA O entardecer é feito de vitrais...
A AIA Até o casario, em reflexos, parece feito de crystal.
OUTRA AIA E o luar já vem de manso. Para os lados d’alem, por traz d’aquellas serras, lia uma luz azulada, um vago clarão...
OUTRA AIA Arrefece.
á infanta
Que a aragem fresca e leve, que vem do mar a esta hora, vos não faça mal, Senhora!
INFANTA
Socegai...
Lisboa, ao luar, é uma cidade d’almas, acaricia. bruscamente
O mar, Leonor, quando fez mal?
reparando num collar de esmeraldas que a aia segura, pegando n‘elle, e passando-as uma a uma pelos dedos, como contas de um rosario, depois de um momento de silencio, como se fallasse para si, sonhando alto
Ha vagas mais verdes e mais lindas ainda que estas esmeraldas... Eu gosto das esmeraldas porque me lembram o mar. O mar é verde, sempre verde; eu nunca vi o mar azul, azul é o céu e o rio. Olhar o mar não é ir vê-lo de longe, e ir até elle, até bem junto d’elle, é vê-lo e senti-lo em cada vaga que vem bater na penedia e desfeita se espraia pela areia... É vê-lo soffrer! É vê-lo luctar! Ondas que veem, que se espraiam, que vão, que voltam, que luctam sempre, e não repousam e não descançam em eterno soffrer!
Silencio. Voltando-se para a aia Leonor
Tu tambem vês, Leonor, como os mais, o mar azul? Tu tambem crês que o mar, o verdadeiro mar, é aquelle que se estende sereno até ao horizonte distante, azul, muito azul?
A AIA Eu vejo o mar azul...
INFANTA Tu olhas o céu no mar, diz antes, mas diz tambem que nunca viste o mar.
A AIA Eu nunca soube ver como vós, Senhora!
INFANTA Por que tens medo de ir até á praia e de estar junto d’elle, como eu, quando as vagas veem umas sobre outras enormes como velhas ao vento, bramindo, rugindo... São mãos portentosas, gigantes, que se desfazem em espuma.
Nunca olhaste de frente as vagas?! Nunca as viste, Leonor, em transparencia?! Pois são verdes, mais verdes e mais lindas ainda que estas esmeraldas!
AAIA Eu nunca soube ver o mar...
depois de um silencio, procurando n‘um anel de opala os reflexos, e mostrando-a á princeza
Como é mysteriosa e tentadora! Se as pedrarias tivessem vida..., se ellas morressem..., eu diria que tinham escolhido as opalas para sarcophagos das suas cores...
OUTRA AIA Trazem desgraça as opalas. São como maus olhados... Teem fogo... queimam...
INFANTA São lindas! São phosphorescentes como o mar em noites negras!...»

«O Homem que não Pregou no Deserto»

O homem que não Pregou no Deserto podia ser a obra de um homem religioso, que o foi Manuel de Figueiredo, que no fim da vida quer deixar o seu testemunho. Mas, mesmo que seja isso, é mais do que isso, porque é obra literariamente bem trabalhada. Manuel de Figueiredo chama-lhe um «Poema dramático». Começa com um prólogo, que é uma cena num café de Lisboa, onde amigos desde há dias têm vindo a debater a questão do valor da verdade científica e da verdade religiosa. No grupo há um poeta, que é o autor da peça e que a vai terminar em breve.
Seguem-se depois quatro quadros, que são a obra propriamente dita. O primeiro é dominado pela tentativa de Salomé de se entregar de amores a João Baptista. Como João Baptista a não reconhece, é ela apenas designada por Moça. A recusa de João Baptista enfurece-a e por isso, no quadro seguinte, em duas cenas, vamos ter, primeiro, uma reunião do Conselho convocada por Herodes Antipas para que os seus conselheiros judeus dêem opinião sobre a sua intenção de degolar João Baptista. Muito salientada a cobardia destes, incapazes de se oporem ao rei. Na segunda cena, os mesmos conselheiros são convocados para assinar o documento em que se contém a decisão da decapitação de João Baptista. Vários declaram-se doentes. Em evidência de novo a cobardia destes homens, a que se contrapõe a ironia de Herodes. O terceiro quadro dá os últimos momentos da vida do Precursor, que adivinha o seu fim e não o teme. De notar o seu testemunho a respeito de Jesus Cristo. A última cena é dominada por Salomé, meia tomada de remorsos, meia louca.
Veja-se a decisiva cena da sedução de Salomé, em cuja linguagem erótica perpassam ecos do Cântico dos Cânticos:

«Vindas por detrás da mesma sebe por onde viera João, algumas moças, em grande alarido, cobertas apenas por véus, surgem e ficam junto da sebe. Só uma delas, destacando-se do grupo, parte do rosto velado, aproxima-se dançando.


A MOÇA — dirigindo-se a João. João! olha para mim. Na curva dos meus braços há abraços perdidos... No requebro do meu corpo há segredos ocultos... João! olha para mim.
JOAO — sem olhar. O Servo do Senhor não pode esmagar a cabeça da Serpente.
A MOÇA dançando sempre. As águas negras do mar de Asfalto são menos negras de que os teus cabelos negros...
Duas ametistas os teus olhos pisados. Um medronho selvagem a tua boca vermelha. João! nos meus seios rosados há leite e há mel... Favos de mel os meus seios rosados.
JOÃO A cabeça da Serpente há-de ser esmagada.
A MOÇA João! olha para mim. As árvores da floresta perfumaram os teus cabelos. As areias do deserto doiraram o teu corpo. Porque recusas apertar nas tuas mãos de sândalo o meu corpo de vime?... Ânfora de nardo em flor o meu corpo de vime...
JOÃO O fogo o purificará no bailado das chamas.
A MOÇA — com violência. Quem és tu, quem és tu que recusas a oferta do meu corpo?
JOÃO Um filho de Deus, vindo do Céu...
A MOÇA Profeta — se o és? — porque são de ametista os teus olhos pisados, de amor e desejo?
JOÃO fitando-a pela primeira vez. Os sulcos das lágrimas são vermelho e roxos.
A MOÇA aproximando-se mais. Rubra de sangue, medronho selvagem da floresta é a tua boca vermelha que eu quero morder... João, dá-me a tua boca!...
JOÃO — afastando-se e afastando-a com os braços. Mulher! O teu corpo de vime é paveia no lume. As serpentes também bailam e ardem no fogo.
A MOÇA — insistindo, aproximando-se mais. Quero morder a tua boca vermelha. Quero beijar os teus olhos pisados. Esconder as minhas mãos em garra nos teus cabelos negros. O perfume da floresta arde no teu corpo. João! dá-me a tua boca.
JOÃO violento. Falsos, traiçoeiros, horrendos, são os teus olhos verdes de serpente.
A MOÇA suspendendo a dança, irritada, altiva, ameaçadora. João! não recuses. O amor e o ódio pertencem-me por igual.
JOÃO mais violento. Maldito é o teu ódio!... Maldito é o teu amor!»

Imagens: ao cimo, primeira espsoa de Manuel de Figueiredo; depois, capas de diversas obras do mesmo.

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